(Pequeno Estudo sobre uma Canção)
A canção intitulada
“Piracicaba”, de autoria do poeta e músico Newton de Almeida Mello, segundo
depoimentos transcritos em jornais de nossa cidade, ou aos atribuídos ao autor,
foi composta num certo dia 09 de setembro de 1931, “em cinco minutos” e sua
primeira gravação aconteceu na voz do saudoso seresteiro Victório Ângelo Cobra,
o popular Cobrinha, em LP gravado pelo selo Colúmbia. Segundo contemporâneos de
Newton de Almeida Mello e dele próprio, fala-se que a música e os versos
nasceram espontaneamente e a harmonização foi, primeira, do maestro Carlos
Brasiliense, a lápis, para poder completá-la depois. Porém o maestro faleceu
“logo em seguida” e Newton pediu ao maestro Danúzio Benencasse que fizesse os
arranjos que se tornaram definitivos. (O que é contraditório, pois o maestro
Carlos Brasiliense somente faleceu em 1954, vinte e três anos depois...)
Se na música não houve
desarmonia nos arranjos do maestro Danúzio, a letra, porém, da canção, que mais
tarde veio a se tornar o Hino Oficial de nossa cidade traz uma calamidade de
distorções, erros, inversões violentas, acréscimo e omissão e mudanças de
palavras, que se chega hoje a haver certa dificuldade em saber, ao certo, como
era a canção original do nosso Poeta.
Os mais envolvidos na arte
poética percebem de cara que o Poeta, ao compor sua magistral canção, fez uso
dos quase que esquecidos versos eneassílabos, isto é: versos compostos em nove
sílabas, segundo os cânones da metrificação.
Diferentemente, porém, dos
clássicos versos compostos com propósitos hinários, que se utilizam cesuras nas
3as., 6as. e 9as. sílabas, Newton de Almeida Mello não teve tal preocupação, e
usou a cesura nas 4as. e 9as., mais apropriado para uma canção. Isso nas três
estrofes que compõem a compõem, sendo que para o refrão, como costuma
acontecer, ele usou um esquema variado de métricas e ritmos que iremos analisar
logo abaixo.
Pois hoje os famosos versos
dessa canção estão tomando outros rumos. Alguns versos estão sendo cantados e
escritos erradamente, e o que era uma composição harmônica e simétrica, está se
tornando uma espécie chula e vazia de conteúdos, o que deixa, estruturalmente,
o poema em si medíocre. Já existe até um verso sendo transformado em decassílabo
sáfico, com cesuras nas 4a., 8a. e 10a.
sílabas. É este o verso:
“Em outras plagas,
que vale a sorte?”
que está sendo transformado em:
“Em outras plagas, ‘o’
que vale a sorte?”
sendo neste caso acrescentado o artigo masculino
singular “o”, que faz transformar o verso perfeito eneassílabo, num
decassílabo perfeito, com cesura nas 4a. 8a. e 10a.
sílabas. Normal se não fossem as estrofes newtonianas eneassilábicas...
Mas
não somente a metrificação dos versos está mudando. Palavras, acentuações, termos
estruturais das rimas estão desqualificando esta pequena obra-prima. Quem já
leu o livro “Carrilhões”, de Newton Mello, irá verificar que ele era um Poeta
de primeira ordem. Construía seus versos com precisão de ourivesaria. Não
quebrava versos, tinha pleno domínio da metrificação, de cesuras, rimas,
esquemas rimários. Tudo dentro dos cânones perfeitos da literatura.
Mas as
aberrações que estão se fazendo somente fazem por desmerecer o Poeta. Quem
apenas lê os versos de “Piracicaba”, à maneira que estão sendo veiculados,
pensa logo que Newton Mello era um poeta medíocre, já que tantas imperfeições
podem-se fazer notar. Para isso desnecessário um longo estudo, pois os erros
são às claras. Como apenas estudante da Arte Poética, irei me ater nesses
pormenores que estão deturpando a canção “Piracicaba”, que através do Decreto
Lei 2.207, de 30 de dezembro de 1988, passou a ser o Hino Oficial de nossa
Cidade.
Aí começa a aberração,
(claro que antes também já havia) mas, a Câmara Municipal de Vereadores da
época, ao invés de ir buscar na fonte a composição correta, fez apenas copiar
por um desavisado “escriba” os melodiosos versos e a catástrofe ocorreu. Os
versos em quadras eneassílabas passaram a ser estrofes quebradas da oitava
italiana, de oito versos quebrados. As rimas nos esquemas encadeadas, (o
primeiro verso rimando no meio do segundo verso, o terceiro rimando no meio do
quarto verso) e ainda as rimas intercaladas (nos finais do segundo verso
rimando com o quarto verso), ficaram comprometidas. E o que se viu foi o
seguinte: (e irei apenas primeiro transcrever as estrofes colhidas no
“Carrilhões” e em seguida as oficializadas pela nobre Câmara de
Vereadores de nossa Piracicaba):
“Carrilhões”
“Numa saudade que punge e mata
– Que sorte ingrata!
– longe daqui,
Em um suspiro triste
e sem termo
Vivo no ermo, dês que
parti.”
“Câmara”
“Numa saudade
Que punge e mata
Que sorte ingrata! (*)
Longe de ti.
“Em um suspiro
Triste e sem têrmo (**)
Vivo no êrmo (**)
Dês que nasci.”
(*) notem a falta de pontuação
(**) erros de acentuação, em desacordo com a lei
5.765, do Congresso Nacional, de 18.12.1971 e também mais erros de pontuação.
Percebam que já nesta
primeira estrofe as mudanças ocorridas foram gritantes: primeiro desapareceram
os travessões, que separavam o vocativo – que sorte ingrata! – e também a
vírgula. Depois o que era “dês que parti”, passou a ser “dês que
nasci” O Poeta jamais cometeria tal erro. Como poderia viver no ermo “dês
que nasci?” Óbvio que ele escreveu “dês que parti”, pois somente ele
passou a se sentir no ermo após “partir”, e não após “nascer”.
Após esta estrofe segue o refrão, largamente cantando, mais uma vez de
forma errada. Em “Carrilhões” vem desta forma:
“Piracicaba que eu adoro
tanto,
Cheia de flores,
Cheia de encanto...
Ninguém compreende
a grande dor que sente
O filho ausente
a suspirar por ti!”
na cópia da “Câmara”:
“Piracicaba que eu adoro
tanto,
Cheia de flores,
Cheia de encantos...
Ninguém compreende a grande
dor
Que sente
Um filho ausente a suspirar
por ti!”
O primeiro erro ocorre na
rima TANTO E ENCANTO, que passou a ser TANTO E ENCANTOS. Um S que pluralizou o
adjetivo, e tornou a rima imperfeita. Newton Mello jamais faria isso.
Depois o verso decassílabo:
“Ninguém compreende
a grande dor que sente”
pentâmetro iâmbico duplamente cesurado com cesuras
nas 2a. 4a. 6a. 8a e 10a.
sílabas, puro artesanato, pura inspiração de um Poeta de raça, passou a ser
assim:
“Ninguém compreende a grande
dor
Que sente”
Um verso octassílabo e outro verso dissílabo.
Depois ainda
“O filho ausente”
passou a ser “Um filho ausente”
aí no “o” filho ausente, o poeta se referia a
ele próprio, já que o “o” é artigo definido masculino singular. “Um filho ausente” poderia ser qualquer um de
nós. E o Poeta não estava fazendo tal referência quando compôs seu belíssimo
hino/canção.
Na segunda estrofe da
canção, em “Carrilhões” vem desta maneira:
“Em outras plagas, que vale
a sorte?
Prefiro a morte junto de ti.
Amo teus prados, os
horizontes,
O céu e os montes que vejo
aqui.”
Bem, aí acontece um colapso total, pois na letra
oficializada pela Câmara de nossa cidade, esta vem a ser a terceira estrofe,
não a segunda. Total desrespeito para com o Poeta. Mas vamos analisar apenas o
original e a cópia. E na cópia vem assim grafada:
“Em outras plagas
O que vale a sorte?
Prefiro a morte
Junto de ti...
“Adoro os prados,
Os horizontes,
A Terra e os montes (*)
Donde eu nasci.”
(*) de outra versão há esta “pérola”:
“O céu e os montes que vejo
ali (sic)
Ainda existe esta outra versão:
“Em outras plagas o que vale
a sorte
Prefiro a morte junto de ti
Adoro os prados os
horizontes
As serras e os montes onde
nasci”.
Piracicaba não possui serras e ainda o verso torna mais quebrado, sem
referência adequada quanto a cesuras. Esta cópia foi publicada no Diário de Piracicaba.
A cópia não traz a data. A acentuação é inexistente e em muitos casos
totalmente errada.
Aí aparece o famoso “o”,
que faz deixar o verso eneassílabo um errado decassílabo. Tal artigo não
existe. O Poeta esta fazendo uma pergunta: “Em outras plagas, que
vale a sorte?” perfeito, correto, tanto poeticamente como gramaticalmente.
Depois “amo teus prados” passou a ser “adoro os prados”,
ao “os horizontes” surgiu um estranho “a Terra e os montes” e “as
serras e os montes”, ao que era “que vejo aqui”, passou a ser
“donde eu nasci”. Percebem quantos erros? O pior é que as pessoas cantam
e cantam erradamente. Não percebem as distorções. Após vem a terceira estrofe,
que na letra da Câmara vem de forma invertida e também com erros. Em
“Carrilhões” vem assim:
“Só vejo estranho, meu berço
amado,
Tendo a teu lado o que
perdi...
Pouco se importam com teu
encanto
Que eu amo tanto, dês que
nasci...”
Na Câmara:
“Só vejo estranhos
Meu berço amado,
Ter ao seu lado
O que eu perdi...
“Poucos se importam
Com teus encantos,
Que eu amo tanto
Dês que nasci...”
O “tendo a teu lado o que
perdi”, passou a ser “ter ao seu lado o que eu perdi...” Aí já
acontece erro de concordância gramatical, pois os “estranhos meu berço amado”
só poderiam “terem ao seu lado”. Ainda “teu” com “seu”,
depois vem o pronome “eu”, inexistente no original, que aparece na letra da
“Câmara”, fora ainda o “tendo” e a forma “ter”...
Depois o Poeta grava
acertadamente “pouco se importam”, que ele quis dizer que as pessoas “pouco”
se importam e não que “poucos se importam”. Não são os poucos presentes
que se importam, porém quem esta presente. O pronome, embora supresso (eles) “pouco
se importam...” Ainda existe o plural de “encanto”, que passa a ser “encantos”,
numa rima quebrada que o Poeta não ousaria fazer. Depois ainda “o que eu
perdi...” passa a ser “dês que nasci...”
Tenho ainda em mãos uma
cópia digitada com um adendo a mão e sem assinatura onde vem escrito: “letra
correta, gravada por Inesita Barroso, em 1962, e autorizada pelo próprio Newton”.
Mas vários erros fazem-se acontecer de acentuação, falta de vírgulas,
travessões, exclamações. Já no terceiro verso da primeira estrofe vem gravado “como
um suspiro triste e sem termo,”. Oras, “como um suspiro” não
tem nada a ver. Além de ser feio é antipoético.
O Poeta não estava “comendo um suspiro...” (sic). “Em um suspiro...”
além de estar correto, é muito mais poético. Já no refrão ocorre o seguinte
erro:
“Piracicaba que eu adoro
tanto:
Cheia de flores, cheia de
encantos
Ninguém compreende a grande
dor que sente
Um filho ausente a suspirar
por ti
ENCANTOS vem (de novo) erradamente no plural e
quebra a rima com TANTO.
Os versos “Cheia de
flores” e “cheia de encanto” unidos, foram um versos eneassílabo e
fica fora dos cânones poéticos, com cesuras inadequadas: na 1a., 4a.
6a. e 9a. sílabas. Aos versos decassílabos, que são os
outros três versos do estribilho, o poeta fez dois versos quadrissílabos
perfeitos e aceitáveis. Depois vem novamente “Um filho ausente” e não “o
filho ausente”. Mais uma vez repetimos: o Poeta falava de si próprio e não
de qualquer filho, que aí sim seria “um filho ausente...” Caso de
sujeito indeterminado. Mas neste caso era “o” filho ausente, ele próprio.
Depois na última estrofe nos
dois versos finais, novamente os erros:
“Poucos se importam com teus
encantos
Que eu amo tanto dês que
nasci”
Tenho também em mãos a página inicial da Prefeitura de Piracicaba,
datada de 08.08.2002. Na primeira estrofe falta, no segundo verso, o travessão
inicial, e é o único senão. Também na contracapa do livro “Retrato das
Tradições Piracicabanas”, de Hugo Pedro Carradore, há somente esta falha. Em
ambos os casos a letra está CORRETA! Já num xerox de partitura para acordeon,
de Rozany M. de Barros, e com autógrafo de Newton de Almeida Mello, para Luzia,
no terceiro verso da primeira estrofe vem grafado:
“Que um suspiro triste e sem
termo” ao
invés de “Em um suspiro triste e sem termo...”
o que em tese deixaria o verso octassílabo, mas com
cesura errada na 3a., 5a. e 8a. sílabas, já
que haveria uma ditongação entre os vocábulos “que um” que seriam
pronunciados “queum”.
Ainda também consulto uma
outra letra da canção, esta vinda através da Secretaria de Ação Cultural em
homenagem ao seresteiro Victorio Ângelo Cobra. Fôssemos enumerar as diferenças
e teríamos uma nova letra a ser sobreposta.
Já ouvi várias vezes em
disco, ou em épocas passadas, ao vivo, o saudoso Cobrinha cantando
“Piracicaba”. Como ele a gravou em todos os seus Lps, para cada gravação
adicionava ou suprimia, ou criava alguma nova palavra... É dele o “em outras
plagas ‘o’ que vale a sorte?” Afinal ele era cantor, não compositor, por
isso passava-lhe despercebidamente tal detalhe. Também ouvi Rolando Boldrin,
César e Paulinho, Craveiro e Cravinho e todos cantam erradamente o hino/canção
de nossa cidade.
Mas isto já pouco importa.
Importa, sim, que a Câmara de Vereadores de nossa cidade tome a máxima urgência
e faça uma revisão ao que foi outrora feito de supetão, dia 30 de dezembro de
1988, último dia útil de um mandato, e tome as devidas providências para que
tão linda canção, feita por um dos mais inspirados Poetas de Piracicaba, possa
ser cantada acertadamente de hoje em diante... ou que pelo menos no papel ela
seja correta...
Ainda existem correndo pela
cidade, com certeza, outras publicações e com certeza muitos textos fantasmas e
apócrifos. Se até o próprio Hino Nacional Brasileiro cuja letra aparece em
vídeo na Câmara de Vereadores traz imperfeições, como “ó lábaro que
ostentas estrelado...” trocando o artigo definido masculino singular “o” por um
exclamativo “ó”, nada mais podemos dizer sobre esta canção (tão linda)
com tantas aberrações.
Para completar copio o texto
que penso estar correto, pois está compilado em “Carrilhões”. Tal livro foi
publicado em vida e com revisão do Poeta, portanto da forma que lhe pareceu ser
correta... E com certeza, era a forma correta!
PIRACICABA
Numa saudade que punge e
mata
– Que sorte ingrata! – longe
daqui,
Em um suspiro triste e sem
termo
Vivo no ermo, dês que parti.
Estribilho
Piracicaba que eu adoro
tanto,
Cheia de flores,
Cheia de encanto...
Ninguém compreende a grande
dor que sente
O filho ausente a suspirar
por ti!
Em outras plagas, que vale a
sorte?
Prefiro a morte junto de ti.
Amo teus prados, os
horizontes,
O céu e os montes que vejo
aqui.
Só vejo estranhos, meu berço
amado,
Tendo a teu lado o que
perdi...
Pouco se importam com teu
encanto
Que eu amo tanto, dês que
nasci...
Carrilhões, página 35
1a. Edição, 1957
0 COMENTE AQUI:
Postar um comentário